LIBERTATIS NUNTIUS

Instruções sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação



INTRODUÇÃO

O Evangelho de Jesus Cristo é mensagem de liberdade e força de libertação. Esta verdade essencial tornou-se, nos últimos anos, objeto da reflexão dos teólogos, com uma nova atenção que, em si mesma, é rica de promessas.

A libertação é antes de tudo e principalmente libertação da escravidão radical do pecado. Seu objetivo e seu termo é a liberdade dos filhos de Deus, que é dom da graça. Ela exige, por uma conseqüência lógica, a libertação de muitas outras escravidões, de ordem cultural, econômica, social e política, que, em última análise, derivam todas do pecado e constituem outros tantos obstáculos que impedem os homens de viver segundo a própria dignidade. Discernir com clareza o que é fundamental e o que faz parte das conseqüências é condição indispensável para uma reflexão teológica sobre a libertação.

Na verdade, diante da urgência dos problemas, alguns são levados a acentuar unilateralmente a libertação das escravidões de ordem terrena e temporal, dando a impressão de relegar ao segundo plano a libertação do pecado e, portanto, de não atribuir-lhe praticamente a importância primordial que lhe compete. A apresentação dos problemas por eles proposta torna-se, por isso, confusa e ambígua. Outros, com a intenção de chegar a um conhecimento mais exato das causas das escravidões que desejam eliminar, servem-se, sem a suficiente precaução crítica, de instrumentos de pensamento que é difícil, e até mesmo impossível, purificar de uma inspiração ideológica incompatível com a fé cristã e com as exigências éticas que dela derivam.

A Congregação para a Doutrina da Fé não pretende tratar aqui o vasto tema da liberdade cristã e da libertação em si mesmo. Propõe-se a fazê-lo num documento posterior, no qual porá em evidência, de maneira positiva, toda a sua riqueza, tanto para a doutrina como para a prática.

A presente Instrução tem uma finalidade mais precisa e mais limitada: quer chamar a atenção dos Pastores, dos teólogos e de todos os fiéis para os desvios e perigos de desvios, prejudiciais à fé e à vida cristã, inerentes a certas formas da teologia da libertação que usam, de maneira insuficientemente crítica, conceitos assumidos de diversas correntes do pensamento marxista.

Esta advertência não deve, de modo algum, ser interpretada como uma desaprovação de todos aqueles que querem respondergenerosamente e com autêntico espírito evangélico à "opção preferencial pelos pobres". Nem pode, de maneira alguma, servir de pretextopara aqueles que se refugiam numa atitude de neutralidade e de indiferença diante dos trágicos e urgentes problemas da miséria e dainjustiça. Pelo contrário, é ditada pela certeza de que os graves desvios ideológicos que ela aponta levam inevitavelmente a trair a causados pobres. Mais do que nunca, convém que grande número de cristãos, com uma fé esclarecida e decididos a viver a vida cristã na suatotalidade, se empenhem, por amor a seus irmãos deserdados, oprimidos ou perseguidos, na luta pela justiça, pela liberdade e peladignidade humana. Hoje mais do que nunca, a Igreja propõe-se a condenar os abusos, as injustiças e os atentados à liberdade, onde querque eles aconteçam e quaisquer que sejam seus autores, e lutar, com os seus próprios meios, pela defesa e promoção dos direitos dohomem, especialmente na pessoa dos pobres.

I - UMA ASPIRAÇÃO

1. A poderosa e quase irresistível aspiração dos povos à libertação constitui um dos principais sinais dos tempos que a Igreja deve perscrutar e interpretar à luz do Evangelho. Este fenômeno marcante de nossa época tem uma amplidão universal; manifesta-se, porém, emformas e em graus diferentes, conforme os povos. É sobretudo entre os povos que experimentam o peso da miséria e entre as camadasdeserdadas que esta aspiração se exprime com vigor.

2. Esta aspiração traduz a percepção autêntica, ainda que obscura, da dignidade do homem, criado "à imagem e semelhança de Deus" (Gn1,26-27), rebaixada e menosprezada por múltiplas opressões culturais, políticas, raciais, sociais e econômicas, que muitas vezes seacumulam.

3. Ao revelar-lhes a sua vocação de filhos de Deus, o Evangelho suscitou no coração dos homens a exigência e a vontade positiva de umavida fraterna, justa e pacífica, na qual cada pessoa possa encontrar o respeito e as condições da sua auto-realização espiritual e material. Esta exigência encontra-se, sem dúvida, na raiz da aspiração de que falamos.

4. Por conseqüência, o homem já não está disposto a sujeitar-se passivamente ao peso esmagador da miséria, com suas seqüelas de morte, doença e depauperamento. Sente profundamente esta miséria como uma intolerável violação da sua dignidade original. Muitos fatores,entre os quais é preciso incluir o fermento evangélico, contribuíram para o despertar da consciência dos oprimidos.

5. Já não se ignora, mesmo nos segmentos da população ainda dominados pelo analfabetismo, que, graças ao maravilhoso progresso dasciências e das técnicas, a humanidade, em constante crescimento demográfico, seria capaz de assegurar a cada ser humano um mínimo debens exigidos pela sua dignidade de pessoa.

6. O escândalo das gritantes desigualdades entre ricos e pobres - quer se trate de desigualdades entre países ricos e países pobres, ou dedesigualdades entre camadas sociais dentro de um mesmo território nacional - já não é tolerado. De um lado, atingiu-se uma abundânciajamais vista até agora, que favorece o desperdício; e, de outro lado, vive-se ainda numa situação de indigência, marcada pela privação dosbens de primeira necessidade, de modo que já não se conta mais o número das vítimas da subnutrição.

7. A falta de eqüidade e de sentido de solidariedade nos intercâmbios internacionais reverte de tal modo em benefício dos paísesindustrializados, que a distância entre ricos e pobres aumenta sem cessar. Daí o sentimento de frustração, entre os povos do TerceiroMundo, e a acusação de exploração e de colonialismo econômico lançada contra os países industrializados.

8. A recordação dos estragos causados por um certo tipo de colonialismo e de suas conseqüências aviva muitas vezes feridas etraumatismos.

9. A Sé Apostólica, na linha do Concílio Vaticano II, bem como as Conferências Episcopais, não têm cessado de denunciar o escândalo que constitui a gigantesca corrida armamentista que, além das ameaças que faz pesar sobre a paz, absorve enormes somas, uma parcela das quais seria suficiente para acudir às necessidades mais urgentes das populações privadas do necessário.

II – EXPRESSÕES DESTA ASPIRAÇÃO

1. A aspiração pela justiça e pelo reconhecimento efetivo da dignidade de cada ser humano, como qualquer outra aspiração profunda, exige ser esclarecida e orientada.

2. Com efeito, é um dever usar de discernimento acerca das expressões, teóricas e práticas, desta aspiração. Pois existem numerososmovimentos políticos e Sociais que se apresentam como porta-vozes autênticos da aspiração dos pobres e como habilitados, mesmo com orecurso a meios violentos, a realizar as transformações radicais que poriam fim à opressão e à miséria do povo.

3. Deste modo, a aspiração pela justiça encontra-se muitas vezes prisioneira de ideologias que ocultam ou pervertem o seu sentido,propondo à luta dos povos para a sua libertação objetivos que se opõem à verdadeira finalidade da vida humana e pregando meios de açãoque implicam o recurso sistemático à violência, contrários a uma ética que respeite as pessoas.

4. A interpretação dos sinais dos tempos à luz do Evangelho exige, pois, que se perscrute o sentido da aspiração profunda dos povos pelajustiça, mas, ao mesmo tempo, que se examinem, com um discernimento crítico, as expressões teóricas e práticas que são componentesdesta aspiração.

III - A LIBERTAÇÃO, TEMA CRISTÃO

1. Considerada em si mesma, a aspiração pela libertação não pode deixar de encontrar eco amplo e fraterno no coração e no espírito doscristãos.

2. Assim, em consonância com esta aspiração, nasceu o movimento teológico e pastoral conhecido pelo nome de "teologia da libertação":num primeiro momento nos países da América Latina, marcados pela herança religiosa e cultural do cristianismo; em seguida, nas outrasregiões do Terceiro Mundo, bem como em alguns ambientes dos países industrializados.

3. A expressão "teologia da libertação" designa primeiramente uma preocupação privilegiada, geradora de compromisso pela justiça,voltada para os pobres e para as vítimas da opressão. A partir desta abordagem podem-se distinguir diversas maneiras, freqüentementeinconciliáveis, de conceber a significação cristã da pobreza e o tipo de compromisso pela justiça que ela exige. Como todo movimento deidéias, as "teologias da libertação" englobam posições teológicas diversificadas; suas fronteiras doutrinais são mal definidas.

4. A aspiração pela libertação, como o próprio termo indica, refere-se a um tema fundamental do Antigo e do Novo Testamento. Por isso,tomada em si mesma a expressão "teologia da libertação" é uma expressão perfeitamente válida: designa, neste caso, uma reflexão teológicacentrada no tema bíblico da libertação e da liberdade e na urgência de suas incidências práticas. A convergência entre as aspiração pelalibertação e as teologias da libertação não é pois fortuita. O significado desta convergência não pode ser compreendido corretamentesenão à luz da especificidade da mensagem da Revelação, autenticamente interpretada pelo Magistério da Igreja.

IV - FUNDAMENTOS BÍBLICOS

1. Uma teologia da libertação corretamente entendida constitui, pois, um convite aos teólogos a aprofundar certos temas bíblicosessenciais, com o espírito atento às graves e urgentes questões que a atual aspiração pela libertação e os movimentos de libertação, ecomais ou menos fiel dessa aspiração, põem à Igreja. Não é possível esquecer, por um só instante, as situações de dramática miséria de ondebrota a interpelação assim lançada aos teólogos.

2. A experiência radical da liberdade cristã constitui aqui o primeiro ponto de referência. Cristo, nosso Libertador, libertou-nos do pecado eda escravidão da lei e da carne, que constitui a marca da condição do homem pecador. É, pois, a vida nova da graça, fruto da justificação,que nos torna livres. Isto significa que a mais radical das escravidões é a escravidão do pecado. As demais formas de escravidãoencontram, pois, na escravidão do pecado, a sua raiz mais profunda. É por isso que liberdade, no pleno sentido cristão, caracterizada pelavida no Espírito, não pode ser confundida com a licença de ceder aos desejos da carne. Ela é vida nova na caridade.

3. As "teologias da libertação" recorrem amplamente à narração do Livro do Êxodo. Este constitui, de fato, o acontecimento fundamentalna formação do povo eleito. É preciso não perder de vista, contudo, que a significação específica do acontecimento provém de suafinalidade, já que esta libertação está orientada para a constituição do povo de Deus e para o culto da Aliança celebrado no Monte Sinai.

Por isso, a libertação do Êxodo não pode ser reduzida a uma libertação de natureza prevalentemente ou exclusivamente política. Ésignificativo, de resto, que o termo libertação seja às vezes substituído na Sagrada Escritura pelo outro, muito semelhante, de redenção.

4. Jamais se apagará da memória de Israel o episódio que originou o Êxodo. Ele é o ponto de referência quando, após a destruição deJerusalém e o exílio de Babilônia, o povo eleito vive na esperança de uma nova libertação e, para além dessa, na expectativa de umalibertação definitiva. Nessa experiência, Deus é reconhecido como o Libertador. Ele estabelecerá com seu povo uma nova Aliança, marcadapelo dom do seu Espírito e pela conversão dos corações.

5. As múltiplas angústias e desgraças experimentadas pelo homem fiel ao Deus da Aliança servem de tema para diversos salmos:lamentações, pedidos de socorro, ações de graças referem-se à salvação religiosa e à libertação. Nesse contexto, a desgraça não seidentifica pura e simplesmente com uma condição social de miséria ou com a sorte de quem sofre opressão política. Ela inclui também ahostilidade dos inimigos, a injustiça, a morte e a culpa. Os salmos nos remetem a uma experiência religiosa essencial: somente de Deus seespera a salvação e o remédio. Deus, e não o homem, tem o poder de mudar as situações de angústia. Assim, os "pobres do Senhor" vivemnuma dependência total e confiante na providência amorosa de Deus. Aliás, durante toda a travessia do deserto, o Senhor nunca deixou deprover à libertação e à purificação espirituais de seu povo.

6. No Antigo Testamento, os profetas, desde Amós, não cessam de recordar, com particular vigor, as exigências da justiça e dasolidariedade e de formular um juízo extremamente severo sobre os ricos que oprimem o pobre. Tomam a defesa da viúva e do órfão.Proferem ameaças contra os poderosos: a acumulação de iniquidade acarretará necessariamente terríveis castigos. Isto porque não seconcebe a fidelidade à Aliança sem a prática da justiça. A justiça em relação a Deus e a justiça em relação aos homens são inseparáveis.Deus é o defensor e o libertador do pobre.

7. Semelhantes exigências encontram-se também no Novo Testamento. Ali são até radicalizadas, como demonstra o discurso dasBem-aventuranças. Conversão e renovação devem operar-se no mais íntimo do coração.

8. Já anunciado no Antigo Testamento, o mandamento do amor fraterno estendido a todos os homens constitui agora a suprema norma davida social. Não há discriminações ou limites que possam opor-se ao reconhecimento de todo e qualquer homem como o próximo.

9. A pobreza por amor ao Reino é exaltada. E na figura do pobre somos levados a reconhecer a imagem e como que a presença misteriosa doFilho de Deus que se fez pobre por nosso amor. Este é o fundamento das inexauríveis palavras de Jesus sobre o Juízo, em Mt 25,31-46. Nosso Senhor é solidário com toda desgraça; toda desgraça leva a marca de sua Presença

10. Contemporaneamente, as exigências da justiça e da misericórdia, já enunciadas no Antigo Testamento, são aprofundadas a ponto derevestirem no Novo Testamento uma significação nova. Aqueles que sofrem ou são perseguidos são identificados com Cristo. A perfeiçãoque Jesus exige de seus discípulos (Mt 5,18) consiste no dever de serem misericordiosos "como vosso Pai é misericordioso" (Lc 6,36).

11. É à luz da vocação cristã ao amor fraterno e à misericórdia que os ricos são severamente admoestados para que cumpram o seu dever.
São Paulo, perante as desordens na Igreja de Corinto, acentua vigorosamente a ligação que existe entre tomar parte no sacramento do amore repartir o pão com o irmão que se encontra em necessidade.

12. A Revelação do Novo Testamento nos ensina que o pecado é o mal mais profundo, que atinge o homem no cerne da sua personalidade.
A primeira libertação, ponto de referência para as demais, é a do pecado.

13. Se o Novo Testamento se abstém de exigir previamente, como pressuposto para a conquista desta liberdade, uma mudança da condiçãopolítica e social, é, sem dúvida, para salientar o caráter radical da emancipação trazida por Cristo, oferecida a todos os homens, sejam eleslivres ou escravos politicamente. Contudo, a Carta a Filemon mostra que a nova liberdade, trazida pela graça de Cristo, devenecessariamente ter repercussão também no campo social.

14. Não se pode, portanto, restringir o campo do pecado, cujo primeiro efeito é o de introduzir a desordem na relação entre o homem e Deus,àquilo que se denomina "pecado social". Na verdade, só uma adequada doutrina sobre o pecado permitirá insistir sobre a gravidade deseus efeitos sociais.

15. Não se pode tampouco situar o mal unicamente ou principalmente nas "estruturas" econômicas, sociais ou políticas, como se todos osoutros males derivassem destas estruturas como de sua causa: neste caso, a criação de um "homem novo" dependeria da instauração deestruturas econômicas e sócio-políticas diferentes. Há, certamente, estruturas iníquas e geradoras de iniqüidade, e é preciso ter a coragemde mudá-las. Fruto da ação do homem, as estruturas boas ou más são conseqüências antes de serem causas. A raiz do mal se encontra,pois, nas pessoas livres e responsáveis, que devem ser convertidas pela graça de Jesus Cristo, para viver e agir como criaturas novas, noamor ao próximo, na busca eficaz da justiça, do autodomínio e do exercício das virtudes.

Ao estabelecer como primeiro imperativo a revolução radical das relações sociais e ao criticar, a partir desta posição, a busca da perfeiçãopessoal, envereda-se pelo caminho da negação do sentido da pessoa e de sua transcendência, e destroem-se a ética e o seu fundamento,que é o caráter absoluto da distinção entre o bem e o mal. Ademais, sendo a caridade o princípio da autêntica perfeição, esta não pode serconcebida sem abertura aos outros e sem espírito de serviço.

V - A VOZ DO MAGISTÉRIO

1. Para responder ao desafio lançado à nossa época pela opressão e pela fome, o Magistério da Igreja, com a preocupação de despertar as consciências cristãs para o sentido da justiça, da responsabilidade social e da solidariedade para com os pobres e os oprimidos, relembra repetidamente a atualidade e a urgência da doutrina e dos imperativos contidos na Revelação.

2. Limitamo-nos a mencionar aqui apenas algumas destas intervenções: os pronunciamentos pontifícios mais recentes, Mater et Magistra ePacem in terris, Populorum progressio e Evangelii nuntiandi. Mencionemos ainda a carta ao Cardeal Roy, Octogesima adveniens.

3. O Concílio Vaticano II, por sua vez, tratou as questões da justiça e da liberdade na Constituição pastoral Gaudium et spes.

4. O Santo Padre insistiu em diversas oportunidades neste tema, particularmente nas encíclicas Redemptor hominis, Dives in Misericordiae Laborem exercens. As numerosas intervenções que relembram a doutrina dos direitos do homem tocam diretamente nos problemas dalibertação da pessoa humana diante dos diversos tipos de opressão de que é vítima. É preciso citar, especialmente neste contexto, odiscurso proferido diante da XXXVI Assembléia geral da ONU, em Nova Iorque, no dia 2 de outubro de 1979. No dia 28 de janeiro domesmo ano, João Paulo II, ao abrir a Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Puebla, havia recordado que averdade completa sobre o homem é a base da verdadeira libertação. Este texto constitui um documento de referência direta para a teologiada libertação.

5. Por duas vezes, em 1971 e 1974, o Sínodo dos Bispos tratou de temas que se referem diretamente à concepção cristã da libertação: o temada justiça no mundo e o tema da relação entre a libertação das opressões e a libertação integral ou a salvação do homem. Os trabalhos dosSínodos de 1971 e de 1974 levaram Paulo VI a esclarecer, na Exortação apostólica Evangelii nuntiandi, a relação que existe entre aevangelização e a libertação ou a promoção humana.

6. A preocupação da Igreja pela libertação e pela promoção humana traduziu-se também no fato da constituição da Pontifícia ComissãoJustiça e Paz.

7. Numerosos episcopados, de acordo com a Santa Sé, têm lembrado também eles a urgência e os caminhos para uma autêntica libertaçãohumana. Neste contexto convém fazer menção especial dos documentos das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano deMedelím, em 1968, e de Puebla, em 1979. Paulo VI esteve presente na abertura de Medelím, João Paulo II na de Puebla. Ambos os Papastrataram do tema da conversão e da libertação.

8. Seguindo as pegadas de Paulo VI, insistindo na especificidade da mensagem do Evangelho, especificidade que deriva da sua origemdivina, João Paulo II, no discurso de Puebla, lembrou quais são os três pilares sobre os quais deve assentar uma autêntica teologia dalibertação: a verdade sobre Jesus Cristo, a verdade sobre a Igreja e a verdade sobre o homem .

VI - UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DO CRISTIANISMO

1. Não se pode esquecer a ingente soma de trabalho desinteressado realizado por cristãos, pastores, sacerdotes, religiosos e leigos que, impelidos pelo amor a seus irmãos que vivem em condições desumanas, se esforçam por prestar auxílio e proporcionar alívio aos inumeráveis males que são frutos da miséria. Entre eles, alguns se preocupam por encontrar os meios eficazes que permitam pôr fim, o maisdepressa possível, a uma situação intolerável.

2. O zelo e a compaixão, que devem ocupar um lugar no coração de todos os pastores, correm por vezes o risco de se desorientar ou deserem desviados para iniciativas não menos prejudiciais ao homem e à sua dignidade do que a própria miséria que se combate, se não seprestar suficiente atenção a certas tentações.

3. O sentimento angustiante da urgência dos problemas não pode levar a perder de vista o essencial, nem fazer esquecer a resposta de Jesus ao Tentador (Mt 4,4): "Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus" (Dt 8,3). Assim, sucede quealguns, diante da urgência de repartir o pão, são tentados a colocar entre parênteses e a adiar para amanhã a evangelização: primeiro o pão,a palavra mais tarde. É um erro fatal separar as duas coisas, até chegar a opô-las. O senso cristão, aliás, espontaneamente sugere a muitosque façam uma e outra.

4. A alguns parece até que a luta necessária para obter justiça e liberdade humanas, entendidas no sentido econômico e político, constituao essencial e a totalidade da salvação. Para estes, o Evangelho se reduz a um evangelho puramente terrestre.

5. É em relação à opção preferencial pelos pobres, reafirmada com vigor e sem meios termos, após Medelín, na Conferência de Puebla , deum lado, e à tentação de reduzir o Evangelho da salvação a um evangelho terrestre, de outro lado, que se situam as diversas teologias dalibertação.

6. Lembremos que a opção preferencial, definida em Puebla, é dupla: pelos pobres e pelos jovens. É significativo que a opção pelajuventude seja, de maneira geral, totalmente silenciada.

7. Dissemos acima (cf. IV, 1) que existe uma autêntica "teologia da libertação", aquela que lança raízes na Palavra de Deus, devidamenteinterpretada.

8. Mas sob um ponto de vista descritivo, convém falar das teologias da libertação, pois a expressão abrange posições teológicas, ou atémesmo ideológicas, não apenas diferentes, mas até, muitas vezes, incompatíveis entre si.

9. No presente documento, tratar-se-á somente das produções daquela corrente de pensamento que, sob o nome de "teologia dalibertação", propõe uma interpretação inovadora do conteúdo da fé e da existência cristã, interpretação que se afasta gravemente da fé daIgreja, mais ainda, constitui uma negação prática dessa fé.

10. Conceitos tomados por empréstimo, de maneira acrítica, à ideologia marxista e o recurso a teses de uma hermenêutica bíblica marcadapelo racionalismo encontram-se na raiz da nova interpretação, que vem corromper o que havia de autêntico no generoso empenho inicial emfavor dos pobres.

VII - A ANÁLISE MARXISTA

1. A impaciência e o desejo de ser eficazes levaram alguns cristãos, perdida a confiança em qualquer outro método, a voltarem-se paraaquilo que chamam de "análise marxista".

2. Seu raciocínio é o seguinte: uma situação intolerável e explosiva exige uma ação eficaz que não pode mais ser adiada. Uma ação eficazsupõe uma analise científica das causas estruturais da miséria. Ora, o marxismo aperfeiçoou um instrumental para semelhante análise.Bastará, pois, aplicá-lo à situação do Terceiro Mundo e, especialmente, à situação da América Latina.

3. Que o conhecimento científico da situação e dos possíveis caminhos de transformação social seja o pressuposto de uma ação capaz delevar aos objetivos prefixados, é evidente. Vai nisto um sinal de seriedade no compromisso.

4. O termo "científico", porém, exerce uma fascinação quase mítica; nem tudo o que ostenta a etiqueta de científico o é necessariamente. Porisso, tomar emprestado um método de abordagem da realidade é algo que deve ser precedido de um exame crítico de naturezaepistemológica. Ora, este prévio exame crítico falta a várias "teologias da libertação".

5. Nas ciências humanas e sociais, convém estar atento antes de tudo à pluralidade de métodos e de pontos de vista, cada um dos quaispõe em evidência um só aspecto da realidade; esta, em virtude de sua complexidade, escapa a uma explicação unitária e unívoca.

6. No caso do marxismo, tal como se pretende utilizar na conjuntura de que falamos, tanto mais se impõe a crítica prévia, quanto opensamento de Marx constitui uma concepção totalizante do mundo, na qual numerosos dados de observação e de análise descritiva sãointegrados numa estrutura filosófico-ideológica, que determina a significação e a importância relativa que se lhes atribui. Os a prioriideológicos são pressupostos para a leitura da realidade social. Assim, a dissociação dos elementos heterogêneos que compõem esteamálgama epistemologicamente híbrido torna-se impossível, de modo que, acreditando aceitar somente o que se apresenta como análise, seé forçado a aceitar, ao mesmo tempo, a ideologia. Por isso, não é raro que sejam os aspectos ideológicos que predominem nos empréstimosque diversos "teólogos da libertação" pedem aos autores marxistas.

7. A advertência de Paulo VI continua ainda hoje plenamente atual: através do marxismo, tal como é vivido concretamente, podem-sedistinguir diversos aspectos e diversas questões propostas à reflexão e à ação dos cristãos. Entretanto, "seria ilusório e perigoso chegar aoponto de esquecer o vínculo estreito que os liga radicalmente, aceitar os elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com aideologia, entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação marxista sem tentar perceber o tipo de sociedade totalitária à qual esteprocesso conduz".

8. É verdade que desde as origens, mais acentuadamente, porém, nestes últimos anos, o pensamento marxista se diversificou, dando origema diversas correntes que divergem consideravelmente entre si. Na medida, porém, em que se mantêm verdadeiramente marxistas, estascorrentes continuam a estar vinculadas a um certo número de teses fundamentais que não são compatíveis com a concepção cristã dohomem e da sociedade. Neste contexto, certas fórmulas não são neutras, mas conservam a significação que receberam na doutrina marxistaoriginal. É o que acontece com a "luta de classes". Esta expressão continua impregnada da interpretação que Marx lhe deu e não poderia,por conseguinte, ser considerada como um equivalente, de caráter empírico, da expressão "conflito social agudo". Aqueles que se servemde semelhantes fórmulas, pretendendo reter apenas certos elementos da análise marxista, que de resto seria rejeitada na sua globalidade,alimentam pelo menos um grave mal-entendido no espírito de seus leitores.

9. Lembremos que o ateísmo e a negação da pessoa humana, de sua liberdade e de seus direitos encontram-se no centro da concepçãomarxista. Esta contém de fato erros que ameaçam diretamente as verdades de fé sobre o destino eterno das pessoas. Ainda mais: quererintegrar na teologia uma "análise" cujos critérios de interpretação dependam desta concepção atéia significa embrenhar-se em desastrosascontradições. O desconhecimento da natureza espiritual da pessoa, aliás, leva a subordiná-la totalmente à coletividade e, deste modo, anegar os princípios de uma vida social e política em conformidade com a dignidade humana.

10. O exame crítico dos métodos de análise tomados de outras disciplinas impõe-se de maneira particular ao teólogo. É a luz da fé quefornece à teologia seus princípios. Por isso, a utilização, por parte dos teólogos, de elementos filosóficos ou das ciências humanas tem umvalor "instrumental" e deve ser objeto de um discernimento crítico de natureza teológica. Em outras palavras, o critério final e decisivo daverdade não pode ser, em última análise, senão um critério teológico. É à luz da fé, e daquilo que ela nos ensina sobre a verdade do homeme sobre o sentido último de seu destino, que se deve julgar da validade ou do grau de validade daquilo que as outras disciplinas propõem,de resto, muitas vezes à maneira de conjectura, como sendo verdades sobre o homem, sobre a sua história e sobre o seu destino.

11. Aplicados à realidade econômica, social e política de hoje, certos esquemas de interpretação tomados de correntes do pensamentomarxista podem apresentar, à primeira vista, alguma verossimilhança na medida em que a situação de alguns países oferece analogias comaquilo que Marx descreveu e interpretou, em meados do século passado. Tomando por base estas analogias, operam-se simplificações que,abstraindo de fatores essenciais específicos, impedem, de fato, uma análise verdadeiramente rigorosa das causas da miséria, mantêm asconfusões.

12. Em certas regiões da América Latina, a monopolização de grande parte das riquezas por uma oligarquia de proprietários desprovidos deconsciência social, a quase ausência ou as carências do estado de direito, as ditaduras militares que conculcam os direitos elementares dohomem, o abuso do poder por parte de certos dirigentes, as manobras selvagens de um certo capital estrangeiro, constituem outros tantosfatores que alimentam um violento sentimento de revolta junto àqueles que, deste modo, se consideram vítimas impotentes de um novocolonialismo de cunho tecnológico, financeiro, monetário ou econômico. A tomada de consciência das injustiças é acompanhada por umpathos que pede muitas vezes emprestado ao marxismo seu discurso, apresentado abusivamente como sendo um discurso "científico".

13. A primeira condição para uma análise é a total docilidade à realidade que se pretende descrever. Por isso, uma consciência crítica deveacompanhar o uso das hipóteses de trabalho que se adotam. É necessário saber que elas correspondem a um ponto de vista particular, oque tem por conseqüência inevitável sublinhar unilateralmente certos aspectos do real, deixando outros na sombra. Esta limitação, quederiva da natureza das ciências sociais, é ignorada por aqueles que, à guisa de hipóteses reconhecidas como tais, recorrem a umaconcepção totalizante, como é o pensamento de Marx.

VIII - SUBVERSÃO DO SENSO DA VERDADE E VIOLÊNCIA

1. Esta concepção totalizante impõe assim a sua lógica e leva as "teologias da libertação" a aceitar um conjunto de posições incompatíveiscom a visão cristã do homem. Com efeito, o núcleo ideológico, tomado do marxismo e que serve de ponto de referência, exerce a função deprincipio determinante. Este papel lhe é confiado em virtude da qualificação de científico, quer dizer, de necessariamente verdadeiro, quelhe é atribuída. Neste núcleo, podem-se distinguir diversos componentes.

2. Na lógica do pensamento marxista, a "análise" não é dissociável da práxis e da concepção da história à qual esta práxis está ligada. Aanálise é, pois, um instrumento de crítica e a crítica não passa de uma etapa do combate revolucionário. Este combate é o da classe doproletariado investido de sua missão histórica.

3. Em conseqüência, somente quem participa deste combate pode fazer uma análise correta.

4. A consciência verdadeira é, pois, uma consciência "partidarista". Pelo que se vê, é a própria concepção da verdade que aqui está emcausa e que se encontra totalmente subvertida: não existe verdade - afirma-se - a não ser na e pela práxis "partidarista".

5. A práxis e a verdade que dela deriva são práxis e verdade partidaristas, porque a estrutura fundamental da história está marcada pelaluta de classes. Existe, pois, uma necessidade objetiva de entrar na luta de classes (que é o reverso dialético da relação de exploração quese denuncia). A verdade é a verdade de classe não há verdade senão no combate da classe revolucionária.

6. A lei fundamental da história, que é a lei da luta de classes, implica que a sociedade esteja fundada sobre a violência. À violência queconstitui a relação de dominação dos ricos sobre os pobres deverá responder a contraviolência revolucionária, mediante a qual esta relaçãoserá invertida.

7. A luta de classes é, pois, apresentada como uma lei objetiva e necessária. Ao entrar no seu processo, do lado dos oprimidos, "faz-se" averdade, age-se "cientificamente". Em conseqüência, a concepção da verdade vai de par com a afirmação da violência necessária e, porisso, com a do amoralismo político. Nesta perspectiva, a referência a exigências éticas, que prescrevam reformas estruturais e institucionaisradicais e corajosas, perde totalmente o sentido.

8. A lei fundamental da luta de classes tem um caráter de globalidade e de universalidade. Ela se reflete em todos os domínios da existência,religiosos, éticos, culturais e institucionais. Em relação a esta lei, nenhum destes domínios é autônomo. Em cada um esta lei constitui oelemento determinante.

9. Quando se assumem esta teses de origem marxista é, em particular, a própria natureza da ética que é radicalmente questionada. De fato, ocaráter transcendente da distinção entre o bem e o mal, princípio da moralidade, encontram-se implicitamente negado na ótica da luta declasses.

IX - TRADUÇÃO "TEOLÓGICA" DESTE NÚCLEO IDEOLÓGICO

1. As posições aqui expostas encontram-se às vezes enunciadas com todos os seus termos em alguns escritos de "teólogos da libertação".Em outros, elas se deduzem logicamente das premissas colocadas. Em outros ainda, elas são pressupostas em certas práticas litúrgicas(como por exemplo a "Eucaristia" transformada em celebração do povo em luta), embora quem participe destas práticas não estejaplenamente consciente disso. Estamos, pois, diante de um verdadeiro sistema, mesmo quando alguns hesitam em seguir a sua lógica até ofim. Como tal, este sistema é uma perversão da mensagem cristã, como esta foi confiada por Deus à Igreja. Esta mensagem se encontra,pois, posta em xeque, na sua globalidade, pelas "teologias da libertação".

2. Não é o fato das estratificações sociais, com as conexas desigualdades e injustiças, é a teoria da luta de classes como lei estruturalfundamental da história que é recebida por estas "teologias da libertação", na qualidade de princípio. A conclusão a que se chega é que aluta de classes, entendida deste modo, divide a própria Igreja e em função dela se devem julgar as realidades eclesiais. Pretende-se aindaque afirmar que o amor, na sua universalidade, é um meio capaz de vencer aquilo que constitui a lei estrutural primária da sociedadecapitalista, seria manter, de má fé, uma ilusão falaz.

3. Dentro desta concepção, a luta de classes é o motor da história. A história torna-se assim uma noção central. Afirmar-se-á que Deus sefez história. Acrescentar-se-á que não existe senão uma única história, na qual já não é preciso distinguir entre história da salvação ehistória profana. Manter a distinção seria cair no "dualismo". Semelhantes afirmações refletem um imanentismo historicista. Tende-se, destemodo, a identificar o Reino de Deus e o seu advento com o movimento de libertação humana e a fazer da mesma história o sujeito de seupróprio desenvolvimento como processo da auto-redenção do homem por meio de luta de classes. Esta identificação está em oposição coma fé da Igreja, como foi relembrada pelo Concílio Vaticano II.

4. Nesta linha, alguns chegam até ao extremo de identificar o próprio Deus com a história e a definir a fé como "fidelidade à história", o quesignifica fidelidade comprometida com uma prática política, afinada com a concepção do devir da humanidade concebido no sentido de ummessianismo puramente temporal.

5. Por conseguinte, a fé, a esperança e a caridade recebem um novo conteúdo: são "fidelidade à história", "confiança no futuro", "opçãopelos pobres". É o mesmo que dizer que são negadas em sua realidade teologal.

6. Desta nova concepção deriva inevitavelmente uma politização radical das afirmações da fé e dos juízos teológicos. Já não se tratasomente de chamar a atenção para as conseqüências e incidências políticas das verdades de fé que seriam respeitadas antes de tudo emseu valor transcendente. Toda e qualquer afirmação de fé ou de teologia se vê subordinada a um critério político, que, por sua vez, dependeda teoria da luta de classes, como motor da história.

7. Apresenta-se, por conseguinte, o ingresso na luta de classes como uma exigência da própria caridade; denuncia-se como atitudedesmobilizadora e contrária ao amor pelos pobres a vontade de amar, de saída, todo homem, qualquer que seja a classe a que pertença, e deir ao seu encontro pelas vias não-violentas do diálogo e da persuasão. Mesmo afirmando que ele não pode ser objeto de ódio, afirma-secom a mesma força que, pelo fato de pertencer objetivamente ao mundo dos ricos, ele é, antes de tudo, um inimigo de classe a combater.Como conseqüência, a universalidade do amor ao próximo e a fraternidade transformam-se num princípio escatológico que terá valorsomente para o "homem novo" que surgirá da revolução vitoriosa.

8. Quanto à Igreja, a tendência é de encará-la simplesmente como uma realidade dentro da história, sujeita ela também às leis que, segundose pensa, governam o devir histórico na sua imanência. Esta redução esvazia a realidade específica da Igreja, dom da graça de Deus emistério da fé. Contesta-se, igualmente, que a participação na mesma mesa eucarística de cristãos que, por acaso, pertençam a classesopostas, tenha ainda algum sentido.

9. Na sua significação positiva, a Igreja dos pobres indica a preferência, sem exclusivismo, dada aos pobres, segundo todas as formas demiséria humana, porque eles são os prediletos de Deus. A expressão significa ainda que a Igreja, como comunhão e como instituição, assimcomo os membros da mesma Igreja, tomam consciência, em nosso tempo, das exigências da pobreza evangélica.

10. Mas as "teologias da libertação", que têm o mérito de haver revalorizado os grandes textos dos profetas e do Evangelho acerca dadefesa dos pobres, passam a fazer um amálgama pernicioso entre o pobre da Escritura e o proletariado de Marx. Perverte-se, deste modo, osentido cristão do pobre e o combate pelos direitos dos pobres transforma-se em combate de classes na perspectiva ideológica da luta declasses. A Igreja dos pobres significa, então, Igreja classista, que tomou consciência das necessidades da luta revolucionária como etapapara a libertação e que celebra esta libertação na sua liturgia.

11. É necessário fazer uma observação análoga a respeito da expressão Igreja do povo. Do ponto de vista pastoral, pode-se entender comessa expressão os destinatários prioritários da evangelização, aqueles para os quais, em virtude de sua condição, se volta primeiro que tudoo amor pastoral da Igreja. É possível referir-se também à Igreja como "povo de Deus", ou seja, como o povo da Nova Aliança realizada emCristo.

12. As "teologias da libertação", a que aqui nos referimos, porém, entendem por Igreja do povo a Igreja da luta libertadora organizada. Opovo assim entendido chega mesmo a tornar-se, para alguns, objeto de fé.

13. A partir de semelhante concepção da Igreja do povo, elabora-se uma crítica das próprias estruturas da Igreja. Não se trata apenas deuma correção fraterna dirigida aos Pastores da Igreja, cujo comportamento não reflita o espírito evangélico de serviço e se apegue a sinaisanacrônicos de autoridade que escandalizam os pobres. Trata-se, sim, de pôr em xeque a estrutura sacramental e hierárquica da Igreja, talcomo a quis o próprio Senhor. São denunciados na Hierarquia e no Magistério os representantes objetivos da classe dominante, que épreciso combater. Teologicamente, esta Posição equivale a afirmar que o povo é a fonte dos ministérios e, portanto, pode dotar-se deministros à sua escolha, de acordo com as necessidades de sua missão revolucionária histórica.

X - UMA NOVA HERMENÊUTlCA

1. A concepção partidarista da verdade, que se manifesta na práxis revolucionária de classe, corrobora esta posição. Os teólogos que nãocompartilham as teses da "teologia da libertação", a hierarquia e sobretudo o Magistério romano são assim desacreditados a priori, comopertencentes à classe dos opressores. A teologia deles é uma teologia de classe. Os argumentos e ensinamentos não merecem, pois, serexaminados em si mesmos, uma vez que refletem simplesmente os interesses de uma classe. Por isso, decreta-se que o discurso deles é, emprincípio, falso.

2. Aparece aqui o caráter global e totalizante da "teologia da libertação". Por isso mesmo, deve ser criticada não nesta ou naquela afirmaçãoque ela faz, mas a partir do ponto de vista de classes que ela adota a priori e que nela funciona como princípio hermenêutico determinante.

3. Por causa deste pressuposto classista, torna-se extremamente difícil, para não dizer impossível, conseguir com alguns "teólogos dalibertação" um verdadeiro diálogo, no qual o interlocutor seja ouvido e seus argumentos sejam discutidos objetivamente e com atenção.
Com efeito, estes teólogos, mais ou menos conscientemente, partem do pressuposto de que o ponto de vista da classe oprimida erevolucionária, que seria o mesmo deles, constitui o único ponto de vista da verdade. Os critérios teológicos da verdade vêem-se, destemodo, relativizados e subordinados aos imperativos da luta de classes. Nesta perspectiva, substitui-se a ortodoxia, como regra correta dafé, pela idéia da ortopráxis, como critério de verdade. A este respeito, é preciso não confundir a orientação prática, própria à teologiatradicional, do mesmo modo e pelo mesmo título que lhe é própria também a orientação especulativa, com um primado privilegiado,conferido a um determinado tipo de práxis. Na realidade, esta última é a práxis revolucionária que se tornaria assim critério supremo daverdade teológica. Uma metodologia teológica sadia toma em consideração sem dúvida, a práxis da Igreja e nela encontra um de seusfundamentos, mas isto porque essa práxis é decorrência da fé e constitui uma expressão vivenciada dessa fé.

4. A doutrina social da Igreja é rejeitada com desdém. Esta procede, afirma-se, da ilusão de um Possível compromisso, próprio das classesmédias, destituídas de sentido histórico.

5. A nova hermenêutica inserida nas "teologias da libertação" conduz a uma releitura essencialmente política da Escritura. É assim que seatribui a máxima importância ao acontecimento do Êxodo, enquanto libertação da escravidão política. Propõe-se igualmente uma leiturapolítica do Magnificat. O erro aqui não está em privilegiar uma dimensão política das narrações bíblicas, mas em fazer desta dimensão adimensão principal e exclusiva, o que leva a urna leitura redutiva da Escritura.

6. Quem assim procede, coloca-se por isso mesmo na perspectiva de um messianismo temporal, que é uma das expressões mais radicais dasecularização do Reino de Deus e de sua absorção na imanência da história humana.

7. Privilegiar deste modo a dimensão política é o mesmo que ser levado a negar a radical novidade do Novo Testamento e, antes de tudo, adesconhecer a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, bem como o caráter específico da libertaçãoque ele nos traz e que é fundamentalmente libertação do pecado, fonte de todos os males.

8. Aliás, pôr de lado a interpretação autorizada do Magistério, denunciada como interpretação de classe, é afastar-se automaticamente daTradição. É, por isso mesmo, privar-se de um critério teológico essencial para a interpretação e acolher, no vazio assim criado, as teses maisradicais da exegese racionalista. Retoma-se, então, sem espírito crítico, a Oposição entre o "Jesus da história" e o "Jesus da fé".

9. Conserva-se, sem dúvida, a letra das fórmulas da fé, especialmente a de Calcedônia, mas atribui-se a essas fórmulas uma novasignificação, que constitui urna negação da fé da Igreja. De um lado, rejeita-se a doutrina cristológica apresentada pela Tradição, em nome
do critério de classe; e, de outro lado, pretende-se chegar ao "Jesus da história" a Partir da experiência revolucionária da luta dos pobrespela sua libertação.

10. Pretende-se reviver uma experiência análoga à que teria sido a de Jesus. A experiência dos pobres lutando por sua libertação, que teriasido a de Jesus, e só ela revelaria assim o conhecimento do verdadeiro Deus e do Reino.

11. É claro que a fé no Verbo encarnado, morto e ressuscitado por todos os homens, a quem "Deus fez Senhor e Cristo", é negada. Toma oseu lugar uma "figura" de Jesus, uma espécie de símbolo que resume em si mesmo as exigências da luta dos oprimidos.

12. Propõe-se, assim, uma interpretaçãoo exclusivamente política da morte de Cristo. Nega-se, desta maneira, seu valor salvífico e toda aeconomia da redenção.

13. A nova interpretação atinge, assim, todo o conjunto do mistério cristão.

14. De modo geral, ela opera o que se poderia chamar de inversão dos símbolos. Assim, em lugar de ver no Êxodo com São Paulo uma figurado batismo se tenderá ao extremo de fazer deste um símbolo da libertação política do povo.

15. Pelo mesmo critério hermenêutico, aplicado à vida eclesial e à constituição hierárquica da Igreja, as relações entre a hierarquia e a "base"tornam-se relações de dominação que obedecem à lei da luta de classes. A sacramentalidade, que está na raiz dos ministérios eclesiásticos eque faz da Igreja uma realidade espiritual que não se pode reduzir a uma análise puramente sociológica, é simplesmente ignorada.

16. Verifica-se ainda a inversão dos símbolos no domínio dos sacramentos. A Eucaristia não é mais entendida na sua verdade de presençasacramental do sacrifício reconciliador e como dom do Corpo e do Sangue de Cristo. Torna-se celebração do povo na sua luta. Porconseguinte, a unidade da Igreja é radicalmente negada. A unidade, a reconciliação, a comunhão no amor não mais são concebidas comoum dom que recebemos de Cristo. É a classe histórica dos pobres que, mediante o combate, construirá a unidade. A luta de classes é ocaminho desta unidade. A Eucaristia torna-se, deste modo, Eucaristia de classe. Nega-se também, ao mesmo tempo, a força triunfante doamor de Deus que nos é dado.

XI - ORIENTAÇÕES

1. Chamar a atenção para os graves desvios que algumas "teologias da libertação" trazem consigo não deve, de modo algum, serinterpretado como uma aprovação, ainda que indireta, aos que contribuem para a manutenção da miséria dos povos, aos que dela seaproveitam, aos que se acomodam ou aos que ficam indiferentes perante esta miséria. A Igreja, guiada pelo Evangelho da misericórdia epelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça e deseja responder com todas as suas forças.

2. Um imenso apelo é assim dirigido à Igreja. Com audácia e coragem, com clarividência e prudência, com zelo e força de ânimo, com umamor aos pobres que vai até ao sacrifício, os pastores, como muitos já fazem, hão de considerar como tarefa prioritária responder a esteapelo.

3. Todos aqueles, sacerdotes, religiosos e leigos que, auscultando o clamor pela justiça, quiserem trabalhar na evangelização e napromoção humana, fá-lo-ão em comunhão com seu bispo e com a Igreja, cada um na linha de sua vocação eclesial específica.

4. Conscientes do caráter eclesial de sua vocação, os teólogos colaborarão lealmente e em espírito e diálogo com o Magistério da Igreja.Saberão reconhecer no Magistério um dom de Cristo à sua Igreja e acolherão a sua palavra e as suas orientações com respeito filial.

5. Somente a partir da tarefa evangelizadora, tomada em sua integralidade, se compreendem as exigências de urna promoção humana e deuma libertação autênticas. Esta libertação tem como pilares indispensáveis a verdade sobre Jesus Cristo, o Salvador, a verdade sobre aIgreja, a verdade sobre o homem e sobre a sua dignidade. É à luz das bem-aventuranças, da bem-aventurança dos pobres de coração emprimeiro lugar, que a Igreja, desejosa de ser, no mundo inteiro, a Igreja dos pobres, quer servir a nobre causa da verdade e da justiça. Ela sedirige a cada homem e, por isso mesmo, a todos os homens. Ela é a "Igreja universal. A Igreja do mistério da encarnação. Não é a Igreja deuma classe ou de uma só casta. Ela fala em nome da própria verdade. Esta verdade é realista". Ela leva a ter em conta "cada realidadehumana, cada injustiça, cada tensão, cada luta".

6. Uma defesa eficaz da justiça deve apoiar-se na verdade do homem, criado à imagem de Deus e chamado à graça da filiação divina. Oreconhecimento da verdadeira relação do homem com Deus constitui o fundamento da justiça, enquanto regula as relações entre oshomens. Esta é a razão pela qual o combate pelos direitos do homem, que a Igreja não cessa de promover, constitui o autêntico combatepela justiça.

7. A verdade do homem exige que este combate seja conduzido por meios que estejam de acordo com a dignidade humana. Por isso, orecurso sistemático e deliberado à violência cega, venha esta de um lado ou de outro, deve ser condenado. Pôr a confiança em meiosviolentos na esperança de instaurar uma maior justiça é ser vítima de uma ilusão fatal. Violência gera violência e degrada o homem. Rebaixaa dignidade do homem na pessoa das vítimas e avilta esta mesma dignidade naqueles que a praticam.

8. A urgência de reformas radicais que incidam sobre estruturas que segregam a miséria e constituem, por si mesma, formas de violência,não pode fazer perder de vista que a fonte da injustiça se encontra no coração dos homens. Não se obterão, pois, mudanças sociais queestejam realmente a serviço do homem senão fazendo apelo às capacidades éticas da pessoa e à constante necessidade de conversãointerior. Pois, na medida em que colaborarem livremente, por sua própria iniciativa e em solidariedade, nestas necessárias mudanças, oshomens, despertados no sentido de sua responsabilidade, crescerão em humanidade. A inversão entre moralidade e estruturas é própria deurna antropologia materialista, incompatível com a verdade do homem.

9. É, pois, igualmente ilusão fatal crer que novas estruturas darão origem por si mesmas a um "homem novo", no sentido da verdade dohomem. O cristão não pode desconhecer que o Espírito Santo que nos foi dado é a fonte de toda verdadeira novidade e que Deus é osenhor da história.

10. A derrubada, por meio da violência revolucionária, de estruturas geradoras de injustiças, não é, pois, ipso facto o começo dainstauração de um regime justo. Um fato marcante de nossa época deve ocupar a reflexão de todos aqueles que desejam sinceramente averdadeira libertação dos seus irmãos. Milhões de nossos contemporâneos aspiram legitimamente a reencontrar as liberdadesfundamentais de que estão privados por regimes totalitários e ateus, que tomaram o poder por caminhos revolucionários e violentos,exatamente em nome da libertação do povo. Não se pode desconhecer esta vergonha de nosso tempo: pretendendo proporcionar-lhesliberdade, mantêm-se nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem. Aqueles que, talvez por inconsciência, se tornamcúmplices de semelhantes escravidões, traem os pobres que eles quereriam servir.

11. A luta de classes como caminho para uma sociedade sem classes é um mito que impede as reformas e agrava a miséria e as injustiças.Aqueles que se deixam fascinar por este mito deveriam refletir sobre as experiências históricas amargas às quais ele conduziu.Compreenderiam então que não se trata, de modo algum, de abandonar uma via eficaz de luta em prol dos pobres em troca de um idealdesprovido de efeito. Trata-se, pelo contrário, de libertar-se de uma miragem para se apoiar no Evangelho e na sua força de realização.

12. Uma das condições para uma necessária retificação teológica é a revalorização do magistério social da Igreja. Este magistério não é, demodo algum, fechado. É, ao contrário, aberto a todas as novas questões que não deixam de surgir no decorrer dos tempos. Nestaperspectiva, a contribuição dos teólogos e dos pensadores de todas as regiões do mundo para a reflexão da Igreja é, hoje, indispensável.

13. Do mesmo modo, a experiência daqueles que trabalham diretamente na evangelização e na promoção dos pobres e dos oprimidos énecessária à reflexão doutrinal e pastoral da Igreja. Neste sentido, é preciso tomar consciência de certos aspectos da verdade a partir dapráxis, se por práxis se entende a prática pastoral e uma prática social que conserva sua inspiração evangélica.

14. O ensino da Igreja em matéria social proporciona as grandes orientações éticas. Mas, para que possa atingir diretamente a ação, eleprecisa de pessoas competentes, do ponto de vista científico e técnico, bem como no domínio das ciências humanas e da política. Ospastores estarão atentos à formação destas pessoas competentes, profundamente impregnadas pelo Evangelho. São aqui visados, emprimeiro lugar, os leigos, cuja missão específica é a de construir a sociedade.

15. As teses das "teologias da libertação" estão sendo largamente difundidas, sob uma forma ainda simplificada, nos cursos de formaçãoou nas comunidades de base, que carecem de preparação catequética e teológica e de capacidade de discernimento. São assim aceitas porhomens e mulheres generosos, sem que seja possível um juízo crítico.

16. É por isso que os pastores devem vigiar sobre a qualidade e o conteúdo da catequese e da formação que devem sempre apresentar aintegralidade da mensagem da salvação e os imperativos da verdadeira libertação humana, no quadro desta mensagem integral.

17. Nesta apresentação integral do mistério cristão, será oportuno acentuar os aspectos essenciais que as "teologias da libertação" tendemespecialmente a desconhecer ou eliminar: transcendência e gratuidade da libertação em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem;soberania de sua graça; verdadeira natureza dos meios de salvação, e especialmente da Igreja e dos sacramentos. Tenham-se presentes averdadeira significação da ética, para a qual a distinção entre o bem e o mal não pode ser relativizada; o sentido autêntico do pecado; anecessidade da conversão e a universalidade da lei do amor fraterno. Chame-se a atenção contra uma politização da existência, que,desconhecendo ao mesmo tempo a especificidade do Reino de Deus e a transcendência da pessoa, acaba sacralizando a política eabusando da religiosidade do povo em proveito de iniciativas revolucionárias.

18. E freqüente dirigir aos defensores da "ortodoxia" a acusação de passividade, de indulgência ou de cumplicidade culpáveis diante desituações intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que mantêm estas situações. A conversão espiritual, a intensidade do amor a Deuse ao próximo, o zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza são exigidos a todos, especialmente aos pastorese aos responsáveis. A preocupação pela pureza da fé não subsiste sem a preocupação de dar a resposta de um testemunho eficaz deserviço ao próximo e, em especial, ao pobre e ao oprimido, através de uma vida teologal integral. Pelo testemunho de sua capacidade deamar, dinâmica e construtiva, os cristãos lançarão, sem dúvida, as bases desta "civilização do amor" de que falou, depois de Paulo VI, aConferência de Puebla. De resto, são numerosos os sacerdotes, religiosos ou leigos que se consagram de um modo verdadeiramenteevangélico à criação de uma sociedade justa.

CONCLUSÃO

As palavras de Paulo VI, na Profissão de fé do povo de Deus, exprimem, com meridiana clareza, a fé da Igreja, da qual ninguém podeafastar-se sem provocar, juntamente com a ruína espiritual, novas misérias e novas escravidões.

"Nós professamos que o Reino de Deus iniciado aqui na Terra, na Igreja de Cristo, não é deste mundo, cuja figura passa, e que seucrescimento próprio não se pode confundir com o progresso da civilização, da ciência ou da técnica humanas, mas consiste em conhecercada vez mais profundamente as insondáveis riquezas de Cristo, em esperar cada vez mais corajosamente os bens eternos, em respondercada vez mais ardentemente ao amor de Deus e em difundir cada vez mais amplamente a graça e a santidade entre os homens. Mas é estemesmo amor que leva a Igreja a preocupar-se constantemente com o bem temporal dos homens. Não cessando de lembrar a seus filhos queeles não têm aqui na Terra uma morada permanente, anima-os também a contribuir, cada qual segundo a sua vocação e os meios de quedispõem, para o bem de sua cidade terrestre, a promover a justiça, a paz e a fraternidade entre os homens, a prodigalizar-se na ajuda aosirmãos, sobretudo aos mais pobres e mais infelizes. A intensa solicitude da Igreja, esposa de Cristo, pelas necessidades dos homens, suasalegrias e esperanças, seus sofrimentos e seus esforços, nada mais é do que seu grande desejo de lhes estar presente para os iluminar coma luz de Cristo e reuni-los todos nele, seu único Salvador. Esta solicitude não pode, em hipótese alguma, comportar que a própria Igreja seconforme às coisas deste mundo, nem que diminua o ardor da espera pelo seu Senhor e pelo Reino eterno".

O Sumo Pontífice João Paulo II, no decorrer de uma Audiência concedida ao Cardeal Prefeito que subscreve este documento, aprovou apresente Instrução, deliberada em reunião ordinária da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou que a mesma fosse publicada.

Roma, Sede da Sagrada Congregação Para a Doutrina da Fé, 6 de agosto de 1984, na Festa da Transfiguração do Senhor.

JOSEPH Card. RATZINGER
Prefeito
†ALBERTO BOVONE
Arcebispo tit. de Cesarea de Numidia
Secretário

Autor: Cardeal Joseph Ratzinger e Arc. Alberto Bovone
Fonte: Congregação da Doutrina da Fé

"Eu vos explico a teologia da libertação"


Por Card. Joseph Ratzinger



Para esclarecer a minha tarefa e a minha intenção, com relação ao tema, parecem-me necessárias algumas observações preliminares:
1.                   A teologia da libertação é fenômeno extraordinariamente complexo. É possível formar-se um conceito da teologia da libertação segundo o qual ela vai das posições mais radicalmente marxistas até aquelas que propõem o lugar apropriado da necessária responsabilidade do cristão para com os pobres e os oprimidos no contexto de uma correta teologia eclesial, como fizeram os documentos do CELAM, de Medellin a Puebla. Neste nosso texto, usaremos o conceito “teologia da libertação” em sentido mais restrito: sentido que compreende apenas aqueles teólogos que, de algum modo, fizeram própria a opção fundamental marxista. Mesmo aqui existem, nos particulares, muitas diferenças que é impossível aprofundar nesta reflexão geral. Neste contexto posso apenas tentar pôr em evidência algumas linhas fundamentais que, sem desconhecer as diversas matrizes, são muito difundidas e exercem certa influência mesmo onde não existe teologia da libertação em sentido estrito.
2.                   Com a análise do fenômeno da teologia da libertação torna-se manifesto um perigo fundamental para a fé da Igreja. Sem dúvida, é preciso ter presente que um erro não pode existir se não contém um núcleo de verdade. De fato, um erro é tanto mais perigoso quanto maior for a proporção do núcleo de verdade assumida. Além disso, o erro não se poderia apropriar daquela parte de verdade, se essa verdade fosse suficientemente vivida e testemunhada ali onde é o seu lugar, isto é, na fé da Igreja. Por isso, ao lado da demonstração do erro e do perigo da teologia da libertação, é preciso sempre acrescentar a pergunta: que verdade se esconde no erro e como recupera-la plenamente?
3.                   A teologia da libertação é um fenômeno universal sob três pontos de vista:
a) Essa teologia não pretende constituir-se como um novo tratado teológico ao lado dos outros já existentes; não pretende, por exemplo, elaborar novos aspectos da ética social da Igreja. Ela se concebe, antes, como uma nova hermenêutica da fé cristã, quer dizer, como nova forma de compreensão e de realização do cristianismo na sua totalidade. Por isto mesmo, muda todas as formas da vida eclesial: a constituição eclesiástica, a liturgia, a catequese, as opções morais;
b) A teologia da libertação tem certamente o seu centro de gravidade na América Latina, mas não é, de modo algum, fenômeno exclusivamente latino-americano. Não se pode pensá-la sem a influência determinante de teólogos europeus e também norte-americanos. Além do mais, existe também na Índia, no Sri Lanka, nas Filipinas, em Taiwan, na África - embora nesta última esteja em primeiro plano a busca de uma “teologia africana”. A união dos teólogos do Terceiro Mundo é fortemente caracterizada pela atenção prestada aos temas da teologia da libertação;
c) A teologia da libertação supera os limites confessionais. Um dos mais conhecidos representantes da teologia da libertação, Hugo Assman, era sacerdote católico e ensina hoje como professor em uma Faculdade protestante, mas continua a se apresentar com o pretensão de estar acima das fronteiras confessionais. A teologia da libertação procura criar, já desde as suas premissas, uma nova universalidade em virtude da qual as separações clássicas da Igreja devem perder a sua Importância.
I. O Conceito de Teologia da Libertação e os Pressupostos de sua Gênese
Essas observações preliminares, entretanto, já nos introduziram no núcleo do tema. Deixam aberta, porém, a questão principal: o que é propriamente o teologia da libertação? Em uma primeira tentativa de resposta, podemos dizer: a teologia da libertação pretende dar nova interpretação global do Cristianismo; explica o Cristianismo como uma práxis de libertação e pretende constituir-se, ela mesma, um guia para tal práxis. Mas assim como, segundo essa teologia, toda realidade é política, também a libertação é um conceito político e o guia rumo à libertação deve ser um guia para a ação política. “Nada resta fora do empenho político. Tudo existe com uma colocação política” (Gutierrez). Uma teologia que não seja “prática (o que significa dizer “essencialmente política”) é considerada “idealista” e condenada como irreal ou como veículo de conservação dos opressores no poder.
Para um teólogo que tenha aprendido a sua teologia na tradição clássica e que tenha aceitado a sua vocação espiritual, é difícil imaginar que seriamente se possa esvaziar a realidade global do Cristianismo em um esquema de práxis sócio-político de libertação. A coisa é, entretanto, mais difícil, já que os teólogos da libertação continuam a usar grande parte da linguagem ascética e dogmática da Igreja em clave nova, de tal modo que aqueles que lêem e que escutam partindo de outra visão, podem ter a impressão de reencontrar o patrimônio antigo com o acréscimo apenas de algumas afirmações um pouco estranhas mas que, unidos a tanta religiosidade, não poderiam ser tão perigosas.
Exatamente a radicalidade da teologia da libertação faz com que a sua gravidade não seja avaliada de modo suficiente; não entra em nenhum esquema de heresia até hoje existente. A sua colocação, já de partida, situa-se fora daquilo que pode ser colhido pelos tradicionais sistemas de discussão. Por isto tentarei abordar a orientação fundamental da teologia da libertação em duas etapas:
Primeiramente é necessário dizer algo acerca dos pressupostos que a tornaram possível; a seguir, desejo aprofundar alguns dos conceitos base que permitem conhecer algo da estrutura da teologia da libertação.
Como se chegou a esta orientação completamente nova do pensamento teológico, que se exprime na teologia da libertação? Vejo principalmente três fatores que a tornaram possível:
1.                   Após o Concílio [Vaticano II], produziu-se uma situação teológica nova:
a) Surgiu a opinião de que a tradição teológica existente até então não era mais aceitável e, por conseguinte, se deviam procurar, a partir da Escritura e dos sinais dos tempos, orientações teológicas e espirituais totalmente novas;
b) A idéia de abertura ao mundo e de compromisso no mundo transformou-se freqüentemente em uma fé ingênua nas ciências; uma fé que acolheu as ciências humanas como um novo evangelho, sem querer reconhecer os seus limites e problemas próprios. A psicologia, a sociologia e a interpretação marxista da história foram considerados como cientificamente seguras e, a seguir, como instâncias não mais contestáveis do pensamento cristão;
c) A critica da tradição por parte da exegese evangélica moderna, especialmente a de Bultmann e da sua escola, tornou-se uma instância teológica inamovível que barrou a estrada às formas até então válidas da teologia, encorajando assim também novas construções.
2.                   A situação teológica assim transformada coincidiu com uma situação da historia espiritual também ela modificada. Ao final da fase de reconstrução após a segunda guerra mundial, fase que coincidiu pouco mais ou menos com o término do Concilio, produziu-se no mundo ocidental um sensível vazio de significado, ao qual a filosofia existencialista ainda em voga não estava em condições de dar alguma resposta. Nesta situação, as diferentes formas do neo-marxismo transformaram-se em um impulso moral e, ao mesmo tempo, em uma promessa de significado que parecia quase irresistível à juventude universal. O marxismo, com as acentuações religiosas de Bloch e as filosofias dotadas de rigor científico de Adorno, Harkheimer, Habernas e Marcuse, ofereceram modelos de ação com os quais alguns pensadores acreditavam poder responder ao desafio da miséria no mundo e, ao mesmo tempo, poder atualizar o sentido correto da mensagem bíblica.
3.                   O desafio moral da pobreza e da opressão não se podia mais ignorar, no momento em que a Europa e a América do Norte atingiam uma opulência até então desconhecida. Este desafio exigia evidentemente nova respostas, que não se podiam encontrar na tradição existente até aquele momento. A situação teológica e filosófica mudada convidava expressamente a buscar o resposta em um cristianismo que se deixasse regular pelos modelos da esperança, aparentemente fundados cientificamente, das filosofias marxistas.
II. A Estrutura Gnoseológica Fundamental do Teologia do Libertação
Esta resposta se apresenta totalmente diversa nas formas particulares de teologia da libertação: teologia da evolução, teologia política, etc. Não pode, pois, ser apresentada globalmente.
Existem, no entanto, alguns conceitos fundamentais que se repetem continuamente nas diferentes variações e exprimem comuns intenções de fundo. Antes de passar aos conceitos fundamentais do conteúdo, é necessário fazer uma observação acerca dos elementos estruturais da teologia da libertação.
Para tal, podemos retomar o que já afirmamos acerca da situação teológica mudada após o Concilio. Como já disse, leu-se a exegese de Bultmann e da sua escola como um enunciado da “ciência” sobre Jesus, ciência que devia obviamente ser considerado como válida. O “Jesus histórico” de Bultmann, entretanto, apresentava-se separado por um abismo (o próprio Bultmann fala de Graben, fosso) do Cristo da fé. Segundo Bultmann, Jesus pertence aos pressupostos do Novo Testamento, permanecendo, porém, encerrado no mundo do judaísmo. O resultado final dessa exegese consistiu em abalar a credibilidade histórica dos Evangelhos: o Cristo da tradição eclesial e o Jesus histórico apresentado pela ciência pertencem evidentemente a dois mundos diferentes. A figura de Jesus foi erradicada da sua colocação na tradição por ação da ciência, considerada como instância suprema; deste modo, por um lado, a tradição pairava como algo de irreal no vazio, e, por outro, devia-se procurar para a figura de Jesus uma nova interpretação e um novo significado.
Bultmann, portanto, adquiriu importância não tanto pelas suas afirmações positivas quanto pelo resultado negativo da sua crítica: o núcleo da fé, a cristologia, permaneceu aberto a novas interpretações porque os seus enunciados originais tinham desaparecido, na medida em que eram considerados historicamente insustentáveis. Ao mesmo tempo desautorizava-se o magistério da Igreja, na medida em que o consideravam preso a uma teoria cientificamente insustentável e, portanto, sem valor como instância cognoscitiva sobre Jesus. Os seus anunciados podiam ser considerados somente como definições frustadas de uma posição cientificamente superada.
Além disso, Bultmann foi importante para o desenvolvimento posterior de uma segunda palavra-chave. Ele trouxe à moda o antigo conceito de hermenêutica, conferindo-lhe uma dinâmica nova. Na palavra “hermenêutica” encontra expressão a idéia de que uma compreensão real dos textos históricos não acontece através de uma mera interpretação histórica; mas toda interpretação histórica inclui certas decisões preliminares. A hermenêutica tem a função de “atualizar”, em conexão com a determinação de dado histórico. Nela, segundo o terminologia clássica, se trata de um “fusão dos horizontes” entre “então” [“naquele tempo”] e o “hoje”. Por conseguinte, ela suscita a pergunta: o que significa o então (“naquele tempo”) nos dias de hoje?
O próprio Bultmann respondeu a esta pergunta servindo-se da filosofia de Heidegger e interpretou, deste modo, a Bíblia em sentido existencialista. Tal resposta, hoje, não apresenta mais algum interesse; neste sentido Bultmann foi superado pela exegese atual. Mas permaneceu a separação entre a figura de Jesus da tradição clássica e a idéia de que se pode e se deve transferir essa figura ao presente, através de uma nova hermenêutica.
A este ponto, surge o segundo elemento, já mencionado, da nossa situação: o novo clima filosófico dos anos sessenta. A análise marxista do história e da sociedade foi considerada, nesse ínterim, como a única dotada de caráter “cientifico”, isto significa que o mundo é interpretado à luz do esquema da luta de classes e que a única escolha possível é entre capitalismo e marxismo. Significa, além disso, que toda a realidade é política e que deve ser justificada politicamente.
O conceito bíblico do “pobre” oferece o ponto de partida para a confusão entre a imagem bíblica da história e a dialética marxista; esse conceito é interpretado com a idéia de proletariado em sentido marxista e justifica também o marxismo como hermenêutica legitima para a compreensão da Bíblia. Ora, Segundo essa compreensão, existem, e só podem existir, duas opções; por isso, contradizer essa interpretação da Bíblia não é senão expressão do esforço da classe dominante para conservar o próprio poder. Gutierrez afirma: “A luta de classes é um dado de fato e a neutralidade acerca desse ponto é absolutamente impossível”. A partir dai, torna-se impossível até a intervenção do magistério eclesiástico: no caso em que este se opusesse a tal interpretação do Cristianismo demonstraria apenas estar ao lado dos ricos e dos dominadores e contra os pobres e os sofredores, isto é, contra o próprio Jesus, e, na dialética da história, aliar-se-ia à parte negativa.
Essa decisão, aparentemente “científica” e “hermeneuticamente” indiscutível, determina por si o rumo da ulterior interpretação do Cristianismo, seja quanto às instancias interpretativas, seja quanto aos conteúdos interpretados.
No que diz respeito as instâncias interpretativas, os conceitos decisivos são: povo, comunidade, experiência, história. Se até então a Igreja, isto é, a Igreja Católica na Sua totalidade, que, transcendendo tempo e espaço, abrange os leigos (sensus fidei) e a hierarquia (magistério), fora a instância hermenêutica fundamental, hoje tornou-se a “comunidade” tal instância. A vivência e as experiências da comunidade determinam agora a compreensão e a interpretação da Escritura.
De novo pode-se dizer, aparentemente de maneira muito científica, que a figura de Jesus, apresentada nos Evangelhos, constitui uma síntese de acontecimentos e interpretações da experiência de comunidades particulares, onde no entanto a interpretação é muito mais importante do que o acontecimento, que, em si, não é mais determinável.
Essa síntese original de acontecimento e interpretação pode ser dissolvida e reconstruída sempre de novo: a comunidade “interpreta” com a sua “experiência” os acontecimentos e encontra assim sua “práxis”. Esta idéia, podemos encontra-la em modo um tanto diverso do conceito de povo, com o qual se transformou a acentuação conciliar da idéia de “povo de Deus” em mito marxista. As experiências do “povo” explicam a Escritura. “Povo” torna-se assim um conceito oposto ao de “hierarquia” e em antítese a todas as instituições indicadas como forças da opressão.
Afinal, é “povo” quem participa da “luta de classes”; a “igreja popular” acontece em oposição à Igreja hierárquica. Por fim, o conceito de “história” torna-se instância hermenêutica decisiva. A opinião, considerada cientificamente segura e irrefutável, de que a Bíblia raciocine em termos exclusivamente de história da salvação, e portanto de maneira anti-metafísica, permite a fusão do horizonte bíblico com a idéia marxista da história que procede dialeticamente como autêntica portadora de salvação; a história é a autêntica revelação e, portanto, a verdadeira instância hermenêutica da interpretação bíblica.
Tal dialética é apoiada, algumas vezes, pela pneumatologia. Em todo caso, também esta última, no magistério que insiste em verdades permanentes, vê uma instância inimiga do progresso, dado que pensa “metafisicamente” e assim contradiz a “história”. Pode-se dizer que o conceito de história absorve o conceito de Deus e de revelação. A “historicidade” da Bíblia deve justificar o seu papel absolutamente predominante e, portanto, deve legitimar, ao mesmo tempo, a passagem para a filosofia materialista-marxista, na qual a história assumiu a função de Deus.
III. Conceitos Fundamentais da Teologia da Libertação
Com isto, chegamos aos conceitos fundamentais do conteúdo da nova interpretação do Cristianismo. Uma vez que os contextos nos quais aparecem os diversos conceitos são diferentes, gostaria de citar alguns deles, sem a pretensão de esquematiza-los.
Comecemos pela nova interpretação da fé, da esperança e da caridade. Com relação a fé, por exemplo, J. Sobrinho afirma: a experiência que Jesus tem de Deus é radicalmente histórica. “A sua fé converte-se em fidelidade”. Por isso Sobrinho substitui fundamentalmente a fé pela “fidelidade à história” (fidelidad a la historia, 143-144). Jesus é fiel à profunda convicção de que o mistério da vida do homem … é realmente o último … (144). Aqui produz-se aquela fusão entre Deus e história que dá a Sobrinho a possibilidade de conservar para Jesus a fórmula de Calcedônia, ainda que com um sentido completamente mudado; pode-se ver como os critérios clássicos da ortodoxia não são aplicáveis à análise dessa teologia, Ignacio Ellacuria, na capa do livro sobre este assunto, afirma: Sobrinho “diz de novo … que Jesus é Deus, acrescentando, porém, imediatamente, que o Deus verdadeiro é somente aquele que se revela historicamente em Jesus e nos pobres, que continuam a sua presença. Somente quem mantém unidas essas duas afirmações, é ortodoxo …“.
A esperança é interpretada como “confiança no futuro” e como trabalho pelo futuro; com isso ela é subordinada novamente ao predomínio da história das classes.
“Amor” consiste na “opção pelos pobres”, isto é, coincide com a opção pela luta de classes.
Os teólogos da libertação sublinham com força, diante do “falso universalismo”, a parcialidade e o caráter partidário da opção cristã; tomar partido é, segundo eles, requisito fundamental de uma correta hermenêutica dos testemunhos bíblicos. Na minha opinião, aqui se pode reconhecer muito claramente a mistura entre uma verdade fundamental do Cristianismo e uma opção fundamental não cristã, que torna o conjunto tão sedutor: o sermão da montanha é, na verdade, a escolha por parte de Deus a favor dos pobres. Mas a interpretação dos pobres no sentido da dialética marxista da história e a interpretação da escolha partidária no sentido da luta de classes é um salto “eis allo genos” (grego: para outro gênero), no qual as coisas contrarias se apresentam como idênticas.
O conceito fundamental da pregação de Jesus é o de “reino de Deus”. Este conceito encontra-se também no centro das teologia da libertação, lido porém no contexto da hermenêutica marxista. Segundo J. Sobrinho, o reino não deve ser compreendido espiritualmente, nem universalmente, no sentido de uma reserva escatologicamente abstrata. Deve ser compreendido em forma partidária e voltado para a práxis. Somente a partir da práxis de Jesus, e não teoricamente, é possível definir o que seria o reino: trabalhar na realidade histórica que nos circunda para transformá-la no reino (166).
Aqui ocorre mencionar também uma idéia fundamental de certa teologia pós-conciliar que impulsionou nessa direção. Muitos apregoaram que, segundo o Concílio, se deveriam superar todas as formas de dualismo: o dualismo de corpo e alma, de natural e sobrenatural, de imanência e transcendência, de presente e futuro. Após o desmantelamento desses dualismos, resta apenas a possibilidade de trabalhar por um reino que se realize nesta história e em sua realidade político-econômica.
Mas justamente dessa forma deixou-se de trabalhar pelo homem de hoje e se começou a destruir o presente, a favor de um futuro hipotético: assim produziu-se imediatamente o verdadeiro dualismo.
Neste contexto gostaria de mencionar também a interpretação, impressionante e definitivamente espantosa, que Sobrinho dá da morte e da ressurreição. Antes do mais, ele estabelece, contra as concepções universalistas, que a ressurreição é, em primeiro lugar, uma esperança para aqueles que são crucificados; estes constituem a maioria dos homens: todos aqueles milhões aos quais a injustiça estrutural se impõe como uma lenta crucifixão (176 e seguintes).
O crente, no entanto, participa também do senhorio de Jesus sobre a história, através da edificação do reino, isto é, na luta pela justiça e pela libertação integral, na transformação das estruturas injustas em estruturas mais humanas. Esse senhorio sobre a história é exercitado ao se repetir o gesto de Deus que ressuscita Jesus, isto é, dando novamente vida aos crucificados da história (181). O homem assumiu o gesto de Deus e aqui a transformação total da mensagem bíblica se manifesta de maneira quase trágica, se se pensa em como essa tentativa de imitação de Deus se desenvolveu e se desenvolve ainda.
Gostaria de citar apenas alguns outros conceitos: o êxodo se transforma em uma imagem central da história da salvação; o mistério pascal é entendido como um símbolo revolucionário e, portanto, a Eucaristia é interpretada como uma festa de libertação no sentido de uma esperança político-messiânica e da sua práxis.
A palavra redenção é substituída geralmente por libertação, a qual, por sua vez, é compreendida, no contexto da história e da luta de classes, como processo de libertação que avança, por fim, é fundamental também a acentuação da práxis: a verdade não deve ser compreendido em sentido metafísico; trata-se de “idealismo”. A verdade realiza-se na história e na práxis. A ação é a verdade.
Por conseguinte, também as idéias que se usam para ação, em última instância são intercambiáveis. A única coisa decisiva é a práxis. A práxis torna-se, assim, o única e verdadeira ortodoxia. Desta forma justifica-se um enorme afastamento dos textos bíblicos: a crítica histórica liberta da interpretação tradicional, que aparece como não-científica.
Com relação à tradição, atribui-se importância ao máximo rigor cientifico na linha de Bultmann. Mas os conteúdos da Bíblia, determinados historicamente, não podem, por sua vez, ser vinculantes de modo absoluto. O instrumento para a interpretação não é, em última análise, a pesquisa histórica, mas, sim, a hermenêutica da história, experimentada na comunidade, isto é, nos grupos políticos, sobretudo dado que a maior parte dos próprios conteúdos bíblicos deve ser considerada como produto de tal hermenêutica comunitária.
Quando se tenta fazer um julgamento geral, deve-se dizer que, quando alguém procura compreender as opções fundamentais da teologia da libertação não pode negar que o conjunto contém uma lógica quase incontestável. Com as premissas da critica bíblica e da hermenêutica fundada na experiência, de um lado, e da análise marxista da história, de outro, conseguiu-se criar uma visão de conjunto do cristianismo que parece responder plenamente tanto às exigências da ciência, quanto aos desafios morais dos nossos tempos. E, portanto, impõe-se aos homens de modo imediato o tarefa de fazer do Cristianismo um instrumento da transformação concreta do mundo, o que pareceria uni-lo a todas as forças progressistas da nossa época.
Pode-se, pois, compreender como esta nova interpretação do Cristianismo atraia sempre mais teólogos, sacerdotes e religiosos, especialmente no contexto dos problemas do terceiro mundo. Subtrair-se a ela deve necessariamente aparecer aos olhos deles como uma evasão da realidade, como uma renúncia à razão e à moral.
Porém, de outra parte, quando se pensa o quanto seja radical a interpretação do Cristianismo que dela deriva, torna-se ainda mais urgente o problema do que se possa e se deva fazer frente a ela.
Comentários de D. Estevão Bettencourt:
À guisa de comentário, parece oportuno salientar os seguintes pontos:
1) A Teologia da Libertação não é um novo tratado teológico ao lado de outros já existentes, mas é uma nova interpretação do Cristianismo, que revira radicalmente as verdades da fé, a constituição da Igreja, a Liturgia, a catequética e as opções morais.
2) Todos os valores e toda a realidade são considerados do ponto de vista político. Uma teologia que não seja essencialmente política, é encarada como fator de conservação dos apressares no poder.
3) A dificuldade de se perceber esse caráter subversiva da Teologia da Libertação está, em grande parte, no fato de que os seus arautos continuam a usar a linguagem ascética e dogmática da Igreja, embora em chave nova. Isto dá aos observadores a impressão de que estão diante do patrimônio da fé acrescido de algumas afirmações religiosas que não podem ser perigosas.
4) A gravidade da Teologia da Libertação não é suficientemente avaliada; não entra em nenhum esquema de heresia até hoje existente.
5) O cristão não pode ser, de forma alguma, insensível à miséria dos povos do Terceiro Mundo. Todavia, para acudir cristãmente a tal situação, não lhe é necessário adotar um sistema de pensamento que é anticristão como a Teologia da Libertação; existe a doutrina social da Igreja, desenvolvida pelos Papas desde Leão XIII até João Paulo II de maneira cada vez mais incisiva e penetrante. Se fosse posta em prática, eliminaria graves males de que sofrem os homens, sem disseminar o ódio e a luta de classes.





CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA
III. A doutrina social da Igreja
2419. «A Revelação cristã conduz [...] a uma inteligência mais penetrante das leis da vida social» (160). A Igreja recebe do Evangelho a revelação plena da verdade acerca do homem. Quando cumpre a sua missão de anunciar o Evangelho, a Igreja atesta ao homem, em nome de Cristo, a sua dignidade própria e a sua vocação para a comunhão das pessoas, e ensina-lhe as exigências da justiça e da paz, conformes à sabedoria divina.
2420. A Igreja emite um juízo moral em matéria económica e social, «quando os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigem» (161). Na ordem da moralidade, ela exerce uma missão diferente da que concerne às autoridades políticas: a Igreja preocupa-se com os aspectos temporais do bem comum em razão da sua ordenação ao Bem soberano, nosso fim último. E esforça-se por inspirar as atitudes justas, no que respeita aos bens terrenos e às relações sócio-económicas.
2421. A doutrina social da Igreja desenvolveu-se no século XIX aquando do confronto do Evangelho com a sociedade industrial moderna, as suas novas estruturas para a produção de bens de consumo, o seu novo conceito de sociedade, de Estado e de autoridade, as suas novas formas de trabalho e de propriedade. O desenvolvimento da doutrina da Igreja em matéria económica e social comprova o valor permanente da doutrina da mesma Igreja, ao mesmo tempo que o verdadeiro sentido da sua Tradição, sempre viva e activa (162).
2422. O ensino social da Igreja inclui um corpo de doutrina que se vai articulando à medida que a mesma Igreja interpreta os acontecimentos no decurso da história à luz do conjunto da Palavra revelada por Cristo Jesus, com a assistência do Espírito Santo (163). Este ensino torna-se tanto mais aceitável para os homens de boa vontade, quanto mais inspira o procedimento dos fiéis.
2423. A doutrina social da Igreja propõe princípios de reflexão, salienta critérios de julgamento e fornece orientações para a acção:
Todo o sistema, segundo o qual as relações sociais forem inteiramente determinadas pelos factores económicos, é contrário à natureza da pessoa humana e dos seus actos (164).
2424. Uma teoria que faça do lucro a regra exclusiva e o fim último da actividade económica, é moralmente inaceitável. O apetite desordenado do dinheiro não deixa de produzir os seus efeitos perversos e é uma das causas dos numerosos conflitos que perturbam a ordem social (165).
Um sistema que «sacrifique os direitos fundamentais das pessoas e dos grupos à organização colectiva da produção», é contrário à dignidade humana (166). Toda a prática que reduza as pessoas a não serem mais que simples meios com vista ao lucro, escraviza o homem, conduz à idolatria do dinheiro e contribui para propagar o ateísmo. «Não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (Mt 6, 24; Lc 16, 13).
2425. A Igreja rejeitou as ideologias totalitárias e ateias, associadas, nos tempos modernos, ao «comunismo» ou ao «socialismo». Por outro lado, recusou, na prática do «capitalismo», o individualismo e o primado absoluto da lei do mercado sobre o trabalho humano (167). Regular a economia só pela planificação centralizada perverte a base dos laços sociais: regulá-la só pela lei do mercado é faltar à justiça social, «porque há numerosas necessidades humanas que não podem ser satisfeitas pelo mercado» (168). É necessário preconizar uma regulação racional do mercado e das iniciativas económicas, segundo uma justa hierarquia dos valores e tendo em vista o bem comum.